O Tempo.
Luis
Stephanou
Recentemente,
de forma completamente acidental, deparei-me com algumas bijouterias de Raquel
Tessari. Não conhecia seu trabalho. Trata-se de uma “remontagem” de velhos
relógios de pulso, já sem função, agora transformados em braceletes, colares,
brincos, pingentes, anéis e pulseiras.
Senti certa
nostalgia, sem melancolia, ao contemplar aqueles relógios desmontados,
destruídos e destituídos de sua função de medir o tempo. A medição do tempo só
existe quando o aprisionamos em códigos; quando o lemos através de máquinas que
construímos para medi-lo. Máquinas que nunca param (não deveriam) de funcionar.
Lembrei de meu avô, relojoeiro, em sua oficina “arrumando o tempo”.
Os relógios
de Raquel Tessari não medem o tempo. Eles embelezam os corpos. De uma forma
diferente, ele também nos fazem lembrar que o tempo age sobre nossos corpos. O
tempo pode ser uma possibilidade de destruição; mas também pode ser uma
alternativa de beleza, de construção.
Estes
estranhos e bonitos relógios não medem o tempo, mas nos permitem algo maior:
sentir o tempo.
Sentir é
reler o tempo. Raquel Tessari abre a possibilidade de “enxergarmos” o tempo a
partir de outros parâmetros. Podemos nos despojar dos instrumentos que medem e
controlam nossas vidas. Não precisamos nos prender às vestimentas do que se
encontra instituído. Podemos subverter o tempo ao transformar relógios em belos
adornos. Podemos ver nossas vidas com outros significados, a partir de outra
lógica. Não é necessário que nossos corpos estejam encerrados à tirania do
tempo; aquele tempo que enxergamos como decadência. Há uma poesia, uma
liberdade que somente pode ser conquistada com o esforço de nossa imaginação -
com o suor das almas de quem não se transformou em máquina.
Sentir o
tempo é, também, reler o mundo. Quando consigo enxergar poesia nos mecanismos
que antes mediam nossos instantes nesse mundo, também consigo enxergar
possibilidades de transformar o mundo. O trabalho de Raquel me faz pensar
nisso: ao “ver” o tempo com outros olhos, também vejo os seres vivos no mundo,com
outra condição. Mais livres; vivendo com mais amor.
Estes relógios desfigurados
parecem nos perguntar: há outro tempo, outra vida em nossos corpos? Parece que
nos desafiam a dizer que sim! Recordei de uma poesia de Pablo Neruda, “Enigma
dos intranqüilos”:
“Pelos dias do ano que virá
encontrarei uma hora diferente,
uma hora nunca mais transcorrida,
como se o tempo se rompesse ali
e abrisse uma janela: um buraco
por onde deslizar-nos até o fundo.
Bom, aquele dia com aquela hora
chegará e deixará tudo mudado:
não se saberá jamais se ontem foi-se
ou o que volta é o que não se passou.
Quando o relógio cair uma hora
ao solo, sem que ninguém a recolha,
e ao fim tenhamos amarrado o tempo,
ou onde terminam os destinos,
porque no trecho morto ou apagado
veremos a matéria das horas
como se vê a pata de um inseto.
E disporemos de um poder satânico:
voltar atrás ou acelerar as horas,
chegar ao nascimento ou à morte
com um motor roubado ao infinito.”
encontrarei uma hora diferente,
uma hora nunca mais transcorrida,
como se o tempo se rompesse ali
e abrisse uma janela: um buraco
por onde deslizar-nos até o fundo.
Bom, aquele dia com aquela hora
chegará e deixará tudo mudado:
não se saberá jamais se ontem foi-se
ou o que volta é o que não se passou.
Quando o relógio cair uma hora
ao solo, sem que ninguém a recolha,
e ao fim tenhamos amarrado o tempo,
ou onde terminam os destinos,
porque no trecho morto ou apagado
veremos a matéria das horas
como se vê a pata de um inseto.
E disporemos de um poder satânico:
voltar atrás ou acelerar as horas,
chegar ao nascimento ou à morte
com um motor roubado ao infinito.”
A beleza e
o amor triunfam sobre o tempo. Podemos roubar um motor ao infinito. É o que
Raquel Tessari nos diz. Será que temos condições de entender esta grande lição?